A quem falar?

João Vasconcelos Costa

Ainda na primeira metade do século XX, não havia dúvidas: o proletariado industrial (e eventualmente em aliança com os camponeses pobres e assalariados rurais) era o alvo principal do discurso de esquerda. Ele constituía uma “classe em si”, isto é, definida pelas relações de produção, mas também uma “classe para si”, isto é, uma classe que tinha tomado consciência da sua vontade de mudança, do seu papel histórico transformador.

Hoje, a estrutura de classes modificou-se radicalmente. Ao invés do ainda dogma do “partido da classe operária”, há um vazio de representação, não por os representados deixarem de se ver representados mas pura e simplesmente porque os representados já não são esse imaginário. O moderno proletariado, ou a nova classe trabalhadora, se definida pelos critérios sociais fundamentais de propriedade dos meios de produção e de apropriação/desapropriação da mais-valia (o trabalho a mais que produz o lucro) inclui hoje um vasto complexo de trabalhadores: operários da indústria, transportes, construção e conservação/reparação; assalariados do setor primário (agricultura e pescas); assalariados da administração das indústrias e assalariados do comércio e serviços, com trabalho de natureza essencialmente não criativa e de rotina; trabalhadores indiferenciados. É uma “classe em si”, socialmente definida e sem ambiguidade, mas deixou de ser uma “classe para si” porque a consciência da classe operária, o seu meio envolvente e criativo da grande fábrica, se diluíram na nova classe e a tecnologia 4.0 acabou com o fordismo dos Tempos Modernos de Chaplin.

Por outro lado, o antigo operariado e a sua ideologia de classe atraiam a atenção e a simpatia de classes de intersecção, intelectuais, técnicos, quadros dirigentes. Isto perdeu-se e estas classes estão cada vez mais dominadas pela ideologia individualista, competitiva, antissocial do neoliberalismo. Sempre as classes de intersecção (muitos lhes chamam classes médias) foram sujeitas a um “campo” (no sentido da Física) de atração bipolar, em sentidos opostos, da classe dominante e da oprimida. Hoje, a dinâmica joga claramente em favor da burguesia.

Por isto, para que se possa constituir um novo bloco histórico de aliança de classes num movimento progressista, nacional-popular, num “domínio plebeu”, não basta já – sem que isso deixe de ser imprescindível – construir a consciência da nova classe trabalhadora. É preciso também falar a todos os que assimilaram no seu senso comum (isto é, as ideias indiscutidas) a ideologia neoliberal. Penso nos meus filhos, bem sucedidos na vida, mas com futuro que não tem as certezas de segurança social que eu tinha. Penso nos meus colegas universitários. Penso nos meus vizinhos, típicos reformados de classes intelectuais e técnicas, que me transmitem o seu “mal de vivre”. Penso em amigos bem instalados no pseudo-conforto de empresas multinacionais “de progresso”.

Podemos garantir aos nossos filhos que vão ter trabalho daqui a vinte anos? E que esse trabalho está ao nível das suas qualificações, que bem custaram à sociedade e muitas vezes também às famílias? E que não assentará na precariedade?

Podemos garantir-lhes um sistema de segurança social como o que, apesar de tudo, ainda temos hoje?

Podemos garantir-lhes um planeta saudável, livre da tendência atual para a perda da biodiversidade e para a mudança climática, com todas as suas possíveis consequências?

Podemos garantir-lhes um clima cultural de liberdade de pensamento, crítica racional, escolhas informadas, controlo da desinformação na comunicação social, exercício pleno da cidadania?

Podemos garantir-lhes habitats sem gentrificação, propiciadores de vida comunitária e lazeres?

Em que sentido vai evoluir a economia nacional: para um desenvolvimento sustentado e uma economia social ou para a crescente dependência dos serviços, das bolhas especulativas, do turismo? Como recuperar as bases perdidas de infra-estruturas e atividade nos setores agropecuário, piscatório e industrial?

Como garantir uma sociedade inclusiva, respeitadora das diferenças e fortalecendo a solidariedade entre todos os seus componentes étnicos e culturais?

Tivemos vantagens com o mercado comum e o euro, no balanço custos-benefícios? Mesmo que com resposta positiva, como libertar o país das enormes constrições económicas forçadas pela União Europeia, bem como as limitações à nossa soberania?

Que modelos concretos podemos conceber para uma economia social, solidária, inclusiva, respeitadora do ambiente?

Como combater a corrupção, cada vez mais corrosiva do sistema de democracia representativa, dependente hoje de políticos profissionais suscetíveis de vícios carreiristas e clientelares? E sabendo que, juntamente com as migrações e a insegurança, a corrupção e o descrédito da “classe política” são hoje terreno favorável aos novos fascismos.

Que alternativas de democracia mais efetiva e participada se podem contrapor à degenerescência de uma democracia representativa caduca e que cada vez menos representa os cidadãos, em particular os do povo?

Como promover a otimização do uso dos recursos naturais de forma a garantir a sustentabilidade da vida económica e social?

Que soluções para o problema demográfico e do envelhecimento, em particular dos seus custos de segurança social e de saúde?

Como regular equilibradamente os aspetos positivos e negativos da Internet, das redes sociais? Como garantir a boa informação, sem manipulações e falsidades? Como compatibilizar a exposição pública nas redes e no lazer televisivo com a defesa da privacidade?

Como tornar eficaz a administração pública, essencial para a qualidade do Estado social de bem-estar, respeitando os direitos dos trabalhadores da função pública?

Como combater a marginalização e a lumpenização, caminhos para a miséria, a violência, a queda nas adições?

Estas não são só questões a colocar-se para consciencialização da nova classe trabalhadora. Dirigem-se a todos os “homens de boa vontade”.