As grandes mudanças sociais, sistemáticas, não dependem só de fatores objetivos, económico-sociais, embora estes sejam determinantes quando vistos em última instância. Igualmente importantes são os fatores subjetivos, com realce para a ideologia, motor das vontades. Inversamente, a ideologia dominante também é um fator decisivo na manutenção de uma situação vigente, principalmente enquanto o sistema ainda está em evolução ascendente. A dominação não se exerce só pela coerção na sociedade política, mas também pelo consenso na sociedade civil, quando a ideologia dos dominadores é aceite e depois assimilada pelo povo em geral. Essa ideologia ganha assim hegemonia e entra, mais a tradição, como material novo da construção do sentido comum, isto é, todo o pensamento não crítico, instintivo, tudo o que temos por indiscutível e que nos determina no dia a dia.
Hoje, a tradução ideológica dos interesses dominantes é a ideologia neoliberal e ela invadiu tudo, num período em que a esquerda pouco tem para oferecer como contraponto. A forte implantação da ideologia neoliberal, que acompanhou a financeirização e a globalização – os dois aspetos essenciais, interligados, do capitalismo atual – coincide com dois fatores de recuo das alternativas: o colapso do sistema soviético e a acelerada derrapagem para a direita da social-democracia. Em ambos os casos, a respectivas ideologias, que alimentaram o movimento dos trabalhadores durante quase todo o século XX, perderam força e poder de atração e há hoje um grande vazio à esquerda.
Em síntese, o neoliberalismo é uma ideologia, pensamento económico e programa político centrados na crença na infalibilidade do mercado, na supremacia da atividade económica privada, na não intervenção do Estado e na privatização do setor produtivo público, na redução da despesa pública, na livre circulação de bens e capitais e na globalização, na desregulação financeira, na competição sem travões.
É também um escudo – e uma máscara em termos da consciência coletiva – para a exaustão de recursos e para a imensidade dos custos externos, ou externalidades. Com desprezo pelos custos externos, os investimentos e os negócios são avaliados apenas em termos dos custos diretos e nos lucros previstos. Descuram-se as externalidades, os efeitos colaterais, na poluição atmosférica, nos recursos hídricos, na biodiversidade, na qualidade dos solos, na poluição sonora, na sinistralidade rodoviária, no congestionamento e desconforto da vida. Estes custos nunca são imputados efetivamente aos responsáveis primários, apesar de os governos terem de o tentar, para satisfazer os protestos de movimentos cada vez mais interventivos. No entanto, no limite, a atribuição desses custos – por exemplo, ambientais – aos diretamente responsáveis levaria ao colapso do sistema económico tal como determinado pelo mercado e não há meios eficazes, no capitalismo atual, para conseguir a sua compensação.
Coincidente com a derrota do socialismo real no fim da guerra fria, a ideologia neoliberal relaciona-se também com a ordem unipolar então instaurada, não devendo ser vista separadamente do imperialismo tal como ele é hoje. O neoliberalismo, adotado por muitas elites nacionais, alimenta a sua subserviência e seguidismo em relação aos EUA. Por isto, o combate à ideologia neoliberal passa também pela afirmação das soberanias nacionais.
As primeiras formulações do neoliberalismo, nos anos 30, passaram quase desapercebidas, mas ele vem a ganhar grande projeção pelo suporte ideológico que nele acharam Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Lembremo-nos de que já antes, no entanto, tinha havido a experiência dos “Chicago boys” (os discípulos de von Mises e de Milton Friedman) no governo de Pinochet. Com o seu alastramento progressivo à Europa continental, a seguir, influenciando decisivamente o chamado “consenso de Bruxelas”, o neoliberalismo tornou-se hegemónico. Como disse Thatcher, “there is no alternative”, não há alternativa. A afirmação até ganhou acrónimo, o célebre TINA.
Como ideologia invasiva, o neoliberalismo acabou por cobrir e abafar as clássicas âncoras tradicionais das pessoas, a religião, as culturas, os costumes identificadores. Nem o futebol ficou imune… No limite, assume aspetos de um novo totalitarismo, que enforma toda a vida da sociedade e das pessoas, prendendo-as num novo senso comum.
A ideologia neoliberal difunde-se alastrando como mancha de petróleo no oceano, mas tem preferência por setores, profissões ou instituições determinantes para a formatação das mentes. Os seus principais arautos residem nas universidades – em particular nas escolas de economia, direito e ciências sociais -, nos estratos de topo das grandes empresas, na comunicação social, no sistema judicial. E, obviamente, nos partidos de direita e suas organizações de juventude, nas confederações patronais, nas associações profissionais.
Como é regra nas ideologias totalizantes, a linguagem neoliberal martela sistematicamente num tambor que ressoa mitos. O mito de que os ricos e empresários é que criam a riqueza, de que a riqueza provém exclusivamente do capital sem contribuição do trabalho– a verdadeira fonte do valor. O mito de que o capitalismo moderno deixou de ser um sistema de exploração, mudando-se para colaboração (e até deixou de haver trabalhadores, na novilíngua neoliberal, agora nobilitados como colaboradores). O mito da inteligência do mercado, quando a lógica do mercado é contrária à satisfação do comum e se alimenta da ganância, do clientelismo, do tráfico de influências, da desigualdade, tantas vezes da corrupção. O mito de que o setor público é um peso morto, quando, afinal, muitos serviços públicos são cada vez mais apetecíveis para o setor privado, desde que numa ótica do lucro, como a educação, a saúde e a poupança para a reforma. O mito da natureza diabólica do défice, invocando até a prudência da boa dona de casa, quando afinal o défice não excessivo é injeção de dinheiro na economia, para investimento e é autofinanciado, quando há capacidade de emissão de moeda.
O neoliberalismo alimenta – e alimenta-se dela – uma mentalidade individualista, egoísta e competitiva. Como Margaret Thatcher afirmava da maneira mais clara, não havia sociedade; só indivíduos, homens e mulheres e as suas famílias. Ela espelha a premissa que pretende ser a base de tudo o que pensemos e façamos: que a competição é o único princípio organizador da atividade humana.
O objetivo do sucesso, não só financeiro mas em todos os aspetos exteriores da vida (mesmo que à custa dos aspetos interiores, pessoais) e a perspetiva artificiosa de enriquecimento sempre possível dão luz a uma nova utopia, viciosa no seu individualismo não apenas comportamental mas também possessivo, alimentado pelo crédito imposto por um “marketing” impiedoso. Para a realização do sucesso pode valer tudo neste mercado global; tudo o que se possa pagar passa a ser um direito, independentemente de qualquer valor moral. Um preço a pagar é o medo, a dois níveis. A nível pessoal, o medo do insucesso, da falta de segurança, também das retaliações pelo reclamação ou mesmo o simples exercício dos direitos. Socialmente e politicamente, o medo que tem o sistema, sentindo-se sempre instável, de sofrer qualquer perturbação que possa desencadear um imprevisível efeito borboleta. Por isto, tem de ser sempre controlado o que respeite às lutas dos trabalhadores, à assimilação digna dos imigrantes, aos direitos das mulheres e das minorias, ao combate pelo ambiente.
É certo que o atual capitalismo financeiro tem agudizado as contradições próprias a um grau nunca antes imaginado. Todavia, é inegável que o capitalismo financeiro atual, embrulhado na sua roupagem neoliberal, tem ultrapassado sucessivas crises. Da mesma forma, não há ainda uma alternativa ideológica renovada, uma proposta transformadora que consiga penetrar significativamente no sentido comum, construído pelo sistema de hegemonia cultural e ideológico do neoliberalismo.
É clássica a ideia de que, quando se desvanecem as alternativas, as atitudes face ao sistema e à sua ideologia hegemónica ou olham para o passado, num saudosismo romântico e muitas vezes retrógrado, ou ficam presas no presente, numa passividade positivista de resignação com uma situação tida como necessariamente inevitável. A atitude necessária é a de olhar para o futuro e de construir alternativas, mesmo que pareçam “fantasias concretas” ou “utopias práticas”.
Na situação atual, a alternativa que falta é necessariamente política, por falta de correspondência partidária à grande mudança social e tecnológica do último meio século, mas é fundamentalmente uma alternativa construída no terreno social, da sociedade civil. No entanto, por muito importantes que sejam todas as movimentações sociais que continuam a ocorrer, elas têm de ultrapassar o domínio das reivindicações económico-corporativas ou identitárias, e têm de contribuir para a emergência de alternativas ideológicas amplas, mobilizadoras e com impacto popular. Um combate prioritário é contra a hegemonia da ideologia neoliberal.