Este é um tempo de interrogação e de crise, em que tudo parece conjugar-se para gerar o sentimento de negação da perspetiva de progresso. Tempo de interregno, em que “o velho está a morrer e o novo ainda não se afirmou”. Neste interregno, aparece uma grande variedade de sintomas mórbidos: o irracionalismo, o racismo, a xenofobia, o egoísmo, a segmentação social com quebra da solidariedade social, a falta de ética cívica, a perda da noção da cidadania, os preconceitos sociais, o cinismo nas relações internacionais.
A humanidade enriqueceu, mas aumentaram as desigualdades. O aumento exponencial do conhecimento, com todos os seus aspetos positivos, dificulta o acesso a fontes credíveis e põe em risco a solidez da informação. A nova revolução tecnológica e digital tem como outra face o desemprego seletivo, a fragmentação dos coletivos de trabalhadores e a uberização. O acesso ao ensino massificou-se, mas o sistema educativo tornou-se economicista, dando um contributo reduzido para a “cultura integral do indivíduo”, para a formação da cidadania e a consciência do que é o serviço publico.
A nível mais geral, a globalização gera a desindustrialização no centro e o desemprego, ao mesmo tempo que a desigualdade na periferia, ainda que crie novas burguesias nacionais. A economia tornou-se muito mais predatória para a natureza, com graves problemas ambientais e com riscos graves para a capacidade de regeneração da vida. A mudança demográfica pressiona os sistemas de proteção social e de saúde. A miséria e as guerras desencadeiam as grandes migrações e os problemas dramáticos resultantes do acolhimento deficiente por parte dos países procurados pelos migrantes.
Apesar dos sintomas de crise e dos grandes problemas reais de hoje, é preciso reconhecer que isso não significa que a crise do sistema produtivo seja sistémica, estrutural ou final. O neoliberalismo domina o sistema económico, político e social e fornece uma cobertura superestrutural eficaz ao capitalismo financeiro. É errado pensar que este está em crise acelerada e que virão proximamente tempos de transformação fácil ou inevitável.
A perspetiva neoliberal, com o endeusamento do mercado, tem como derivada lógica a mercantilização de todas as coisas, incluindo as atividades humanas, os seus serviços básicos – educação, saúde, segurança social – e a cultura, os lazeres, o desporto. No grande mercado totalizador, querem despromover-nos de cidadãos para consumidores passivos e obedientes, já não só de bens e serviços, por via da publicidade, mas agora de ideias, de valores, de atitudes políticas, por via da esmagadora hegemonia cultural e ideológica.
O sistema dispõe de instrumentos de dominação ideológica na sociedade civil – comunicação social, círculos intelectuais, igrejas, universidades, etc. – que formatam valores e ideias e as instilam no sentido comum, esterilizando a capacidade crítica das pessoas.
A enorme capacidade de informação articula-se dialeticamente com o seu oposto, a pervasividade da contra-informação, da falsidade das notícias, da apologia do irracional e dos preconceitos. A manipulação da consciência humana é dramática. A utilização irracional das redes sociais amplia grandemente a confusão. Instaura-se uma mentalidade consumista, hedonista, individualista, gananciosa, tendo a grande competitividade e o sucesso pessoal como valor essencial. Dilui-se também o espírito de serviço público, tanto na atividade do Estado como na mentalidade dos cidadãos.
O sistema neoliberal e as alternativas autoritárias que emergem refletem-se também nos desvios da democracia representativa, nos seus limites ou mesmo incapacidades para a construção e defesa de uma democracia real, tanto política como económica, social e cultural.
Há um descontentamento manifesto com a democracia representativa, um sentimento de desilusão e frustração que é reflexo de as pessoas se sentirem cada vez mais longe da responsabilidade efetiva na vida e da decisão política. O poder executivo é distante e incontrolado , os representantes eleitos para o poder legislativo não são obrigados a uma efectiva prestação de contas. A falta de ética republicana, o partidarismo clientelar, a política espetáculo, a corrupção são alguns dos fatores que explicam os bem patentes desvios à norma democrática.
O sistema dominante na fase atual gera uma enorme massa de frustrados, descartáveis e dispensáveis, que ficam disponíveis para engrossarem as fileiras populistas da ultradireita e dos neofascistas. O descrédito que se promove em relação à democracia representativa também alimenta essa ascensão da ultradireita.
Existe uma solução democrática para estes problemas, que está consagrada na nossa Constituição mas esquecida na prática – a democracia participativa. Os cidadãos, para além do exercício do voto para eleição dos seus representantes, também têm o direito e o dever de participar concretamente na própria ação política, com representação mais direta e dispondo de poder político nos processos de deliberação e de controlo do exercício do poder. Esta é a mais sólida contribuição para a soberania popular, para a igualdade política, para a igualdade distributiva, para a cultura cívica e para a eficiência governativa e económica.
É necessário intervir a nível do Estado para a consagração legal e suporte prático da participação. Mas é na base que ela verdadeiramente se constrói. Vai-se afirmando pela emergência e atividade das organizações da sociedade civil, pela manifestação crescente de uma cultura de responsabilidade, de prestação de contas e de exigência cidadã, pela participação efectiva, para começar a nível local.
A intervenção cívica na democracia participativa vai de par com a reflexão sobre os valores e princípios dominantes do atual modelo de sociedade. Esta reflexão deve dar resposta ao sentimento das pessoas de que precisam de alguma coisa eletrizante, de sentirem que são mais do que peças de uma engrenagem, que são pessoas, com ideais e valores que podem e devem pôr ao serviço da sociedade.
A motivação para a ação coletiva, de base, na democracia participativa exige, uma “utopia concreta”, indo ao encontro dos problemas, necessidades e aspirações dos mais fracos: sejam pessoas, comunidades ou povos. É necessariamente uma utopia humanista, quente, afetiva, que responde às aspirações e vontade do povo, que estimula a organização dos mais desprotegidos, marginalizados ou dispensados e que dá sentido à sua indignação e protesto
É necessário que a movimentação social na sociedade civil tenha consciência política e objectivos claros. Deve ser assente no espírito comunitário, tanto ou mais importante do que o espírito de cidadania, respeitante ao indivíduo e por isto mesmo também aceite pela ideologia liberal tradicional. Será um movimento de comunidades, em rede e usando as redes sociais, para a solidificação da comunidade geral.
Só com espírito comunitário é que se põe em prática com coerência a democracia participativa, construída da base para o topo (sem excluir iniciativas do topo para a base). Exige também um objetivo político claro – o que não significa seguir uma ideologia específica, tendo antes de ser de amplo leque de tipo unitário, para se conseguir a necessária articulação entre a sociedade política (partidos e instituições) e a sociedade civil. Se o neoliberalismo usa ambas as sociedades, também o movimento popular para lhe dar resposta eficaz, tem de saber encontrar as suas próprias formas, adequadas e específicas para tal articulação.
É indispensável que os cidadãos tenham capacidade critica, disponham de informação objetiva e séria que possibilite a interpretação e análise objectiva dos factos, que ponha em evidência a instrumentalização e apropriação dos mecanismos da democracia representativa pelos poderes não democráticos, que estimule os cidadãos a aperfeiçoarem os seus conhecimentos e cultura e a associarem-se e organizarem-se, articulando-se na base para a resolução dos seus problemas e defesa da comunidade, da liberdade e da democracia real.
É indispensável que os cidadãos façam sentir aos seus representantes no topo da democracia representativa que têm de encontrar formas de aliança, colaboração e cooperação indispensáveis à construção de uma sociedade mais colaborativa, solidária, livre e justa .