Manifesto das Comunidades ABRIL
É louvável que se comemorem os acontecimentos marcantes e positivos da nossa história, como o 25 de Abril, mas mais importante é que essa comemoração traga recordações com significado para o presente e o futuro, que a celebração não seja passadista mas antes um momento de reflexão e de redespertar de vontades para a ação, atual.
O espírito de Abril permanece no essencial mas defronta-se com ameaças, no que respeita ao amor pela liberdade, ao respeito pela democracia e ao seu conteúdo efetivo de correspondência à vontade popular, ao desejo de uma sociedade mais justa, mais igualitária, mais fraterna e pacífica. E nunca esquecendo a continuidade dinâmica entre dois 25 de Abril, o do Programa do MFA e o do processo revolucionário devido ao entrosamento do movimento popular com o empenhamento progressista da maioria dos militares de Abril.
A revolução que se seguiu ao 25 de Abril popularizou o lema dos três Ds: “democratizar, descolonizar, desenvolver”. O que se cumpriu e o que falta cumprir? Como lição para o combate permanente por uma sociedade livre, justa e solidária, é útil comparar o hoje, 50 anos depois, com o futuro então imaginado.
Mas isso só faz sentido na perspetiva da comparação com as expectativas geradas pelos ideais de Abril e pelo processo revolucionário que se lhe seguiu. Comparar as conquistas de Abril com a situação no salazar-fascismo é um absurdo, bem como pretender-se que há responsabilidades do 25 de Abril nas limitações da democracia real e nas desigualdades gritantes a que assistimos agora.
É fácil aceitar que foi cumprido o objetivo da descolonização, apesar de todas as forças que se lhe tentaram opor. Nos outros dois Ds, ficou-se a meio caminho. Mas, como na analogia da bicicleta, ou se pedala sempre ou se cai. E deve-se ter presente que, em última análise, a responsabilidade pelo presente e, logo, pelas condições para o futuro, é dos cidadãos de hoje, não do 25 de Abril!
DEMOCRACIA
A Constituição de 1976 instaurou um regime relativamente avançado de democracia representativa. A democracia ainda hoje, 50 anos depois, parece indiscutível. No entanto, nunca este sistema de democracia representativa esteve tão em crise. A baixa estima pela política e seus agentes, a perceção da corrupção entranhada na política, a falta de ética republicana, o partidarismo clientelar, o carreirismo partidário, são muitos dos fatores que explicam os bem patentes desvios à norma democrática, seja o desinteresse e a abstenção, sejam os sucessos de variadas formas de cesarismo demagógico. Esta crise é também alimento para o fortalecimento da ultradireita, que assim passa a aproveitar-se da decadência do “sistema”, sem que o descontentamento difuso e relativamente indefinido esteja a ter uma resposta adequada do campo democrático, incluindo uma resposta própria da esquerda
Os grandes interesses e as elites influenciam determinantemente as decisões políticas e a legislação; paralelamente, o poder executivo é mais distante e incontrolado; e o poder legislativo, dos representantes eleitos, não é obrigado à prestação de contas. A liberdade é cada vez mais condicionada – e, logo, a igualdade. Já na Revolução francesa perguntava Marat “para que serve a liberdade política para os que não têm pão?”.
A hegemonia ideológica, atualmente baseada nos contravalores da ideologia neoliberal (individualismo, competição, desprezo pelas regras, visão mercantilista de toda a vida, etc.), conseguiu infiltrar-se no senso comum e os instrumentos dessa hegemonia, com destaque para a comunicação social, instilam um “pensamento único” que condiciona a liberdade de opção democrática.
É claro que a consciência das limitações da democracia liberal representativa não significa a rejeição da democracia. É uma conquista da humanidade e por ela pagou muito caro o movimento popular. Trata-se é de a desenvolver no sentido de uma democracia real e plenamente realizada. Tornar realidade uma fórmula clássica, que apesar da sua origem liberal, é válida: “poder do povo, pelo povo e para o povo”.
A regeneração da democracia terá de ser a construção de uma democracia real, em que as pessoas sejam cidadãos com efectivo exercício de poder, em condições realísticas mas que não impeçam a afirmação de fatores de participação democrática dos cidadãos, sem exclusividade da representação do sistema partidário. Sem a democracia participativa, não se evita a captação da política e o seu bloqueio pelos interesses particulares e pela tecnoburocracia; não se dá conteúdo real à política, para além do espetáculo, da retórica oca, dos “sound bites”; não se controla o clientelismo, o carreirismo político e a corrupção; não se fomenta uma cultura cívica, de participação, de serviço público e de noção tanto dos direitos como dos deveres de cidadania, que é essencial co mo fundamento do Estado social de bem-estar.
DESENVOLVIMENTO
Ao longo destes 50 anos, certamente que houve crescimento económico e melhorias sociais, mas muito recuados em relação às expectativas do processo revolucionário de Abril . Aumentou o PIB, aproximámo-nos da média europeia – mas com atraso em relação à velocidade de crescimento de outros países que aderiram mais tarde – e a impressão geral é de que melhorou o nível de vida. Mas isto à custa da destruição da economia primária (agricultura e pescas) e de grande desindustrialização. Somos hoje uma economia de serviços, de mão de obra barata e de exportação baseada num turismo contingente, de baixo nível, com degradação do ambiente, da vida urbana.
Reprivatizaram-se os setores básicos da economia, hoje dominados por poderes estrangeiros ou pelo capitalismo nacional fortalecido depois do refluxo do movimento revolucionário. O trabalho é cada vez mais precário e desprotegido, com crescente recurso a imigrantes desumanamente explorados. E, acima de tudo, não desenvolvemos a nossa maior riqueza, a do potencial humano.
Nada disto é separável da situação geral europeia. A União Europeia foi traduzindo cada vez mais a subordinação à política e ideologia neoliberal: crença na infalibilidade do mercado, na supremacia da atividade económica privada, na não intervenção do Estado na economia, na privatização do setor produtivo público, na redução da despesa pública, na destruição do Estado social de bem-estar, na livre circulação de bens e capitais, na globalização, na desregulação financeira, na competição sem travões.
Um verdadeiro desenvolvimento, o desenvolvimento humano e social, depende hoje crucialmente da libertação das grilhetas da política única europeia, da sua ideologia neoliberal e das constrições do desenho do euro, com os critérios de Maastricht. Uma UE reinventada, um projeto confederal, no respeito integral pela soberania dos países membros, que faça a síntese entre democracia, soberania e socialismo, é provavelmente uma ilusão. Lamentavelmente, porque seria a contribuição dos povos europeus para um projeto civilizacional, solidário e internacionalista, para um novo mundo democrático, pacífico e mais justo.
UNAMO-NOS, ERGUIDOS
É num ambiente político e social muito preocupante que celebramos o 50º aniversário de Abril mas, sejam quais forem as dificuldades, mantemo-nos firmes, como em todos os momentos difíceis vividos nestas décadas.
Entretanto, a sociedade mudou muito, na sua estrutura, na natureza e formas do trabalho, na relação entre a vida social e a tecnologia, na dimensão geográfica da vida. É natural que haja disparidades na perceção dessa mudança, como condicionante do progresso e da justiça sociais, até porque a esquerda (ou o campo progressista, em sentido lato) é sempre mais plural e divergente em análises do que a direita, naturalmente acantonada uniformemente na defesa dos seus interesses.
Uma tarefa de momento é, por um lado, a associação e organização unitária das forças dos que querem mais e melhor justiça, democracia e igualdade. Por outro lado, conhecer bem a situação real que continua em grande mudança, estudar as condições actuais e aplicar os princípios e valores que Abril nos deixou. Não é uma cartilha, nem sequer um catálogo de propostas para hoje, mas continua a ser uma grande inspiração, que pode cimentar uma unidade que comporte diversas visões ideológicas. E isto traduzido numa mensagem mobilizadora, que toque o descontentamento difuso de muita gente, hoje manipulada pela ultradireita.
Nestas cinco décadas, conviveram e ainda convivem gerações sucessivas, desde a dos que lutaram contra o salazar-fascismo e sairam à rua em 1974 até aos jovens de hoje que começam a compreender o triste destino a que os condena o agravamento das condições sociais que é típico do neoliberalismo. A transformação positiva da sociedade no sentido de maior justiça, solidariedade e igualdade, é trabalho e responsabilidade permanente de todas essas gerações, que têm de encontrar ou construir as formas adequadas ao seu tempo e condições. Isso não vem nos livros, tem de se fazer no terreno e na prática.
“Velhos” que viveram o 25 de Abril, jovens que aprenderam a valorizar essa época em que ainda não existiam, uni-vos, indignai-vos e fazei cumprir o que não deixaram que Abril cumprisse.