25 de Abril, a revolução improvável *

João Vasconcelos Costa

Dizer-se que o 25 de Abril foi único e complexo é uma banalidade. Não foi um golpe militar típico e também não foi, depois, uma revolução à maneira clássica. Este é logo um primeiro exemplo dessa complexidade, que também é fonte de muitas outras contradições do 25 de Abril, entendido, nesta comunicação, como tanto o golpe militar como o processo revolucionário que se lhe seguiu imediatamente.

O carácter único do 25 de Abril não impede que haja no 25 de Abril muito de instrutivo para a teoria e prática da ação revolucionária. Por exemplo, uma pergunta elementar, mas de difícil resposta, é: teria sido possível ter-se prosseguido com sucesso a linha revolucionária? Ter-se-ia podido evitar ou controlar os fatores que determinaram a interrupção do caminho para o socialismo?

Houve circunstâncias que favoreceram a eclosão do 25 de Abril como, obviamente, a guerra colonial, mas muitas outras dificultavam a expetativa na revolução. Pode-se dizer hoje, numa frase simples: o 25 de Abril foi uma revolução improvável.

O 25 de Abril foi inesperado e improvável no sentido de não estar previsto nas diversas estratégias das oposições antifascistas. Houve sempre em parte da oposição a perspetiva putschista, mas no que alguns pensavam era num golpe tradicional, com oficiais subalternos, sargentos e praças a reboque disciplinado de generais, tal como estava também a ser preparado pelos ultras do regime. Noutro setor da oposição, o mais ativo, a estratégia de derrube do salazar-fascismo era de levantamento popular armado, o que, embora não excluindo a participação de forças militares ou a neutralização de forças fascistas, não era propriamente uma antevisão da ação militar dos capitães de Abril.

A situação social e económica também não apontava para a probabilidade de uma revolução para derrube do fascismo, a curto prazo.

É certo que a situação económica e social era má, o atrasoera enorme, quase a nível de subdesenvolvimento e dois milhões de portugueses tiveram de emigrar, As despesas de guerra desviaram o já antes escasso investimento e a quase inexistente despesa social de bem-estar. Elas cresceram para o quádruplo entre 1950 e 1962, chegando a representar a taxa inimaginável de cerca de 40% do Orçamento de Estado em 1970. Nem sequer a guerra, como é clássico, promoveu uma economia de guerra. A indústria de guerra portuguesa era vestigial e grande parte das compras militares foram feitas ao estrangeiro.

Viviam-se também os efeitos da crise do petróleo, de meses antes do 25 de Abril. A inflação em 1973 foi de 13%, mais do que duplicando a de três anos antes. O PIB, que tinha a vindo a crescer nos “anos de ouro”, atingindo 9,5% ao ano em 1965, desceu para 5% em 1973. A dívida pública cresceu de 75% do PIB em 1960 para 171% em 1970.

No entanto, apesar de todo este quadro negativo, o regime conseguia manter o povo dentro da moldura eficaz do bom viver tradicional, usando tanto o pau como a cenoura. Por pior que fosse e apesar de das muitas, mas pontuais, manifestações de combate ao regime, a situação não configurava um quadro revolucionário.

O aumento da despesa militar e a falta de investimento eram supridos pelas remessas dos emigrantes. Muita gente do interior rural e pobre viu a sua situação relativamente melhorada pela migração para o litoral urbano, mesmo que viessem inaugurar os primeiros bairros de barracas.

Ao mesmo tempo, emergia uma nova pequena burguesia urbana, diferente, já não só a dos pequenos comerciantes e artesãos. Eram os trabalhadores “aristocratizados”, os empregados bancários com a nova facilidade de jogar na bolsa, o “Boom” da venda de Toyotas baratos e de apartamentos Jota Pimenta. Neste “admirável mundo novo” da civilização dos subúrbios, apareciam as novas catedrais, os centros comerciais ou os grandes hipermercados, começando a vaga do consumismo, mesmo que à nossa pobre escala. Parte significativa da população estava acomodada e desinteressada da mudança política, sem desprimor para aqueles muitos que sempre resistem, que sempre dizem não.

E, no entanto, houve a revolução improvável!

A situação política internacional também apontava para a improbabilidade do 25 de Abril. 72 e 73 marcam, nos EUA, uma grande viragem: a derrota anunciada no Vietname, a abrir caminho para os acordos de Paris; a reeleição de Nixon, a inaugurar um longo ciclo republicano e conservador que durou duas décadas, só interrompido brevemente por Carter; com isto, o enquistamento na “defesa do mundo ocidental”, bem mostrado pelo apoio ao golpe de Pinochet, enquanto pareciam sólidas as ditaduras militares no Brasil, na Argentina, no Paraguai e no Uruguai. No país irmão fascista, a Espanha, havia o chamado milagre económico dos banqueiros do Opus Dei e, por toda a parte, começava a fraquejar a social-democracia. Não faltava muito, e já havia os alicerces, para a emergência do eixo Reagan-Thatcher e a ascensão do neoliberalismo.

Por toda a parte, as forças de esquerda pareciam cada vez mais abaladas e a ameaçar crise. A corrente revolucionária tradicional estava ideologicamente apertada por uma tenaz do radicalismo esquerdista e maoísta e do pseudorradicalismo pós-modernista, com Maio de 68 a dar substância prática à “teoria francesa”, adotada também pela intelectualidade radical americana. Acresce ainda a outra divisão interna do movimento comunista, causada pelo eurocomunismo.

Para não ser tudo negativo, aparecia contraditoriamente uma tendência para a unidade da esquerda tradicional, atraindo em alguns casos, como no Chile, outros setores, radicais. São exemplos marcantes desse espírito o programa comum francês e o compromisso histórico italiano.

A unidade antifascista foi também conseguida formalmente em Portugal em 1973, desenhando-se logo no III Congresso da Oposição, em que participaram, despercebidos, oficiais da Marinha e do Exército, que depois refletiram no programa do MFA a influência do Congresso.

A unidade foi um lema inicial do movimento revolucionário e seria um elemento essencial para conseguir-se resistir aos inevitáveis ataques contra-revolucionários por parte dos grupos saudosos do fascismo e por parte dos interesses económicos que os alimentaram. 

Teria sido importante garantir a unidade em relação a aspetos básicos do Programa do MFA, que também eram proclamados pelos partidos do antifascismo, como sejam o respeito pela democracia representativa, o Estado de direito, a conceção dos direitos como incluindo também os económicos, sociais e culturais, a prioridade ao combate contra os grandes monopólios capitalistas, o que justificava a construção de um amplo bloco histórico juntando aos trabalhadores largas camadas das chamadas “classes médias”.

A unidade necessária passava também pela aliança Povo-MFA. Teria sido possível construi-la na base, sem interferência e choque com a lógica partidária? 

Podia-se ter conciliado a dinâmica de massas, em que o PCP era dominante e a lógica eleitoral, favorável ao PS? 

Era inevitável o choque, com as suas consequências para a unidade do MFA? 

Como podia ter sido evitado? Alguém sabe?

A limitação de tempo não me permite discutir ainda outros fatores de contextualização do 25 de Abril, alguns favoráveis, outros a contribuir para a sua improbabilidade. Refiro telegraficamente alguns exemplos:

1. A alteração da origem de classe dos jovens oficiais, pelo alargamento e facilitação do acesso às academias militares (que é certo que mais tarde teve um refluxo, com recurso a milicianos, afinal a questão dos decretos tão importante para a origem do movimento).

2. O isolamento no mato dos capitães comandantes de companhia, atenuando a influência da hierarquia e dos centros de cultura castrense tradicional, ao mesmo tempo que conviviam estreitamente com oficiais milicianos, muitos dos quais com experiência associativa universitária e com espírito antifascista e anti-colonial.

3. A falência da repressão do movimento, nomeadamente por parte da PIDE/DGS, mostrando as constrições do regime nas relações com os militares, a incapacidade de prever atempadamente a hipótese de politização de um movimento considerado como essencialmente corporativo e ainda a ideia de que um golpe militar só poderia ser um putsch tradicional, de generais e de estado -maior.

4. Também a coesão e forte espírito de unidade no movimento, que evitou traições e denúncias, nada de estranho para quem tenha tido contacto (e toda a minha geração teve) com a cultura e ética militares.

* * * * *

Concluindo:

O 25 de Abril foi uma singularidade e uma improbabilidade. Quer isto dizer que não podemos extrair dele, dos sucessos e falências de todo o processo revolucionário, lições para hoje e para o futuro? 

A situação de hoje é muito diferente, é inegável. Em 74,
— a economia ainda estava longe da financeirização atual;
— a globalização era menos importante do que o neocolonialismo de então e não contribuía para o problema das migrações;
— a terciarização estava no começo;
— a dívida não comprometia tanto as gerações futuras;
— a estrutura de classes era mais simples e clássica;
— a esquerda tinha grande influência no campo cultural;
— a digitalização e a automação, com os seus reflexos no trabalho e em toda a vida ainda eram impensáveis;
— não era tão evidente a erosão da democracia representativa;
— começava a haver preocupações ambientais mas ainda não parecia premente a questão climática.

No entanto, este quadro de diferença tem, por debaixo da tinta, a base comum de uma crise estrutural do capitalismo que vem já dessa época e que se agrava mau grado o sucesso na resolução de sucessivas crises conjunturais de ordem económica e financeira.

Os mecanismos de regulação e segurança do sistema, as suas válvulas de pressão, estão a falir. A democracia representativa dá sinais de degradação e a vida política está abafada e reduzida a formalismos medíocres. Todo o movimento social, nomeadamente o laboral, está reprimido e alguns movimentos foram absorvidos por conceções e práticas elitistas e individualistas. A serpente do fascismo voltou a sair do ovo. 

No plano internacional, a ordem de décadas está a ser abalada, com a periferia a rebelar-se contra o centro, com novas relações de aliança a desenharem-se, com ameaças à moeda dominante. O imperialismo até pode vir a ser posto em causa no plano geopolítico, o que é claramente importante mas não determinante por o conflito estar deslocado do terreno da revolução social e com atores que até podem não se distinguir em nada, em termos de sistema e objetivos sócio-económicos.

Não há paliativos que resolvam a crise estrutural e a solução será revolucionária, no sentido não vulgar da palavra. Isto é, uma mudança radical, qualitativa, do sistema económico e social. Evidentemente, uma revolução forçosamente nova, não uma reedição impossível do 25 de Abril.

Há períodos de intensidade e frequência de lutas insurrecionais, como boa parte do século XIX em França ou as primeiras duas décadas de novecentos na Rússia. Para a revolução, é uma fase ofensiva, de guerra de movimento, para usar a metáfora de Gramsci. Hoje vivemos uma época de retração das forças de transformação, depois de um processo complexo de consolidação do capitalismo, cruzado com um decréscimo do ímpeto revolucionário e de luta permanente. Tanto na sociedade política como na civil se desenvolveram formas mais elaboradas e eficazes de controlo, ligando a coerção ao consenso, em interação dialética no sistema da hegemonia.

A crise estrutural do capitalismo é relativamente compensada pela sua hegemonia ideológica e cultural, conseguida pelo domínio do neoliberalismo. O sistema consegue a assimilação da ideologia dominante pelos subalternos na construção do senso comum. Todo o aparelho ideológico contribui para a formatação das mentalidades, para a aceitação de todos os dogmas e rituais de adoração do deus-mercado. É a universidade, são as igrejas, o sistema jurídico a comunicação social e, hoje, uma nebulosa de agentes de influência, desde as redes sociais e os seus “influencers” até aos “think tanks” intelectualmente mais sofisticados.

O neoliberalismo, o seu conservadorismo, a mentalidade individualista e ferozmente competitiva, moldam completamente o senso comum e robotizam as pessoas num pensamento único. O capitalismo alienou o homem dos bens que produz. Agora, aliena-o também do seu próprio pensamento autónomo.

As capacidades ofensivas do movimento dos trabalhadores e da esquerda política e social estão gravemente diminuídas. A luta frontal, clássica, é nesta fase uma luta inglória, não havendo forças para atingir significativamente o coração do sistema e o seu centro imperialista. A guerra é hoje de posições, de atrito e desgaste.

Vivemos uma fase de impasse e indecisão. Novamente evocando Gramsci, vivemos num interregno, em que“o velho morre e o novo ainda não pode nascer: neste interregno verificam-se os fenómenos patológicos mais variados”, como bem estamos a ver.

Que não se veja nisto sinal de derrotismo, mas é necessário ter presente a realidade para que a improbabilidade se possa tornar, pelo menos, possibilidade. Para isto comece-se por levantar questões teórico-práticas muito importantes, tais como:

  • Qual é hoje o papel das vanguardas, como é que elas se relacionam dialeticamente com as massas, como é que se evita o seu descolamento em relação ao povo? 
  • Continua ou não a ter sentido a noção de classe revolucionária, aquela que passa de “classe em si” para “classe para si”, com consciência, organização, capacidade de luta e um projeto de nova sociedade? Ou o agente de mudança se transferiu, de forma difusa e inorgânica, para as multidões ou para a massa informe de todos “os de baixo”, a nova plebe, como pretendem os populistas?
  • Como mudou a estrutura social, a estrutura de classes? O que é, como se caracteriza e se organiza a classe trabalhadora de hoje?
  • Basta que a aliança de forças progressistas conquiste a maioria eleitoral e o poder político, ou tem de dar um salto qualitativo e constituir-se em movimento nacional-popular,que comporta não só um projeto político mas também cultural e ético?
  • Como se promove a unidade popular e com que bases e critérios se constrói um novo bloco histórico, em termos gramscianos, para enquadramento político desse movimento nacional-popular? 
  • Como se concilia o tempo da transformação com o tempo dos ciclos eleitorais? Isto é, como é que, numa revolução em democracia, se evita que a revolução seja interrompida eleitoralmente; por exemplo em consequência de descontentamento com situações negativas mas transitórias da economia, até por ação externa, como tem acontecido com governos progressistas latino-americanos, mesmo longe de serem revolucionários.

Não tenho dúvidas de que o estudo do processo revolucionário do 25 de Abril, mesmo na sua singularidade, será importante para essa reflexão e debate.

A terminar, outra evocação do 25 de Abril em relação à situação atual. Houve nesse tempo uma intensíssima ação cultural e ideológica.

Referi a hegemonia ideológica e cultural como fator essencial do domínio do sistema. É certo que o combate político é hoje principalmente defensivo, em guerra de posição, e com privilégio do terreno social e económico. Mas, mesmo na guerra defensiva, há sempre lugar para ações ofensivas. Entre elas, ressalta a luta ideológica, como tanto se fez no 25 de Abril.

E o 25 de Abril pode e deve continuar a ser uma referência para a utopia, hoje. Utopia prática, e – usando uma fórmula consagrada – sem que o pessimismo crítico da razão abale o otimismo da vontade. E sempre à esquerda do que é possível!

* Comunicação ao Congresso Internacional 50 Anos 25 de Abril