Face ao aumento do carácter urbano e da complexidade das sociedades modernas, são cada vez maiores os factores a variáveis a ter em conta na procura de sistemas de desenvolvimento sustentado, de governação e de gestão da sociedade que sejam democráticos, inclusivos e solidários, reduzindo as desigualdades existentes e proporcionando a todos iguais oportunidades de realização.
A dignidade humana é hoje reconhecida como um valor essencial, normalmente expresso nas Constituições, sendo protegida por lei e constituindo fundamento da igualdade jurídica de todos, sem distinções nem discriminações.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos — direitos civis, sociais, culturais e económicos, com os concomitantes deveres de cada um face à sociedade em geral — expressa o princípio fundamental e essencial da igual dignidade de todos os seres humanos.
Implica isto que se tornem cada vez mais necessários serviços públicos que acautelem o bem comum e garantam a disponibilização e o acesso a todos os bens essenciais: água, saneamento básico, electricidade, gás, comunicações, telefone, internet, televisão, serviços postais, transportes públicos, cultura, educação, saúde e segurança.
As diferentes sociedades politicamente organizadas dotaram-se de um aparelho de Estado com órgãos de soberania, instituições, aparelho administrativo e serviços públicos de tipos diversos que visam proporcionar à sociedade em geral todos os bens e serviços necessários para satisfação das necessidades básicas da população.
A qualidade de vida das pessoas, mormente as mais desfavorecidas, exige a prestação universal de serviços básicos de qualidade, desiderato que só pode ser assegurado por serviços públicos.
Os serviços públicos constituem um elemento essencial do Estado democrático de matriz social, como é o caso do Estado português criado a partir do 25 de Abril. A nossa Constituição tem como princípio estruturante a igualdade básica de valor e direitos de todos os cidadãos.
Faz parte integrante do princípio da igualdade o direito à não discriminação, princípio que vincula todas as funções do Estado — administração pública, justiça, forças armadas, corpo diplomático, magistraturas, forças de segurança — e obriga igualmente todas as instituições e serviços públicos, não isentando as entidades privadas individuais e colectivas.
O Estado e as suas instituições existem para servir a sociedade em geral, assegurando a todos o acesso a bens e serviços essenciais e a sua defesa perante ataques exteriores.
O Estado regula a conduta da comunidade criando normas que vinculam os cidadãos, mas vinculam igualmente o próprio Estado, todas as suas instituições, órgãos e serviços e respectivos servidores. É esse o sentido do Estado de direito: todos estão sujeitos à lei e todos têm de prestar contas ao soberano, representado pelo conjunto dos cidadãos eleitores.
É na prestação de serviços à comunidade, à sociedade e aos cidadãos que reside a razão de ser e a legitimidade do Estado democrático e dos seus servidores.
Detenhamo-nos um pouco sobre a definição de servidores públicos e na sua condição e deontologia, independentemente dos estatutos específicos dos diferentes corpos ou do exercício de funções de soberania e governo.
São servidores públicos aqueles que por eleição foram escolhidos para o exercício de funções nos órgãos de soberania, os elementos de corpos especiais do Estado — juízes, magistrados do Ministério Público, agentes judiciais, diplomatas, militares e elementos das forças de segurança — e todos os elementos da administração pública normalmente designados por funcionários públicos.
Todos eles — independentemente do seu estatuto específico — servem Portugal e a sociedade portuguesa; numa palavra, servem os cidadãos portugueses.
Nesse sentido, o poder que exercem constitui primordialmente um dever, consubstanciado no desempenho de uma missão de serviço que exige total imparcialidade relativamente aos vários interesses particulares existentes, elevado sentido ético e uma noção clara da justeza e da proporcionalidade da suas acções ou decisões.
Suscitam-se, neste âmbito, várias questões: existe em Portugal e na sociedade portuguesa uma cultura de serviço público? Estão os governantes e os demais servidores públicos imbuídos dessa cultura? Assimilaram eles que a autoridade e o poder que lhes foi conferido são decorrentes da Constituição e que esta deriva da vontade do soberano — os cidadãos portugueses?
Numa democracia participativa é indispensável que todos os servidores públicos assimilem a cultura do serviço público e observem rigorosamente a deontologia inerente. Para isso há que criar instituições que incutam em todos os seus agentes os valores e princípios que têm de enformar todos os órgãos de soberania, corpos do Estado e administração pública.
Numa democracia participativa não haverá dúvidas sobre quem é o soberano em concreto, sem se limitar à abstracta concepção de “o povo”.
O soberano não permitirá que minorias sociais, grupos políticos e económicos se apropriem ou capturem os mecanismos dos Estado para seu benefício próprio, como sucede nos estados dominados pelo neoliberalismo ou em vias de serem por ele desmantelados, com base na falácia de que a gestão privada é mais eficiente do que a pública ou que é preciso reduzir o peso do Estado.
Também em Portugal vai fazendo caminho esta lógica. O nosso Estado de direito e de matriz social vai sendo aos poucos transformado num Estado neoliberal, por via da subalternização e desqualificação dos serviços púbicos, da sua feudalização e do depauperamento das capacidades outrora existentes na administração pública.
O neoliberalismo faz apelo aos piores sentimentos do ser humano: o egoísmo, a ganância, a apetência pelo poder e o sucesso fácil ou a todo o custo; marginaliza os mais desfavorecidos e ataca aqueles que não se deixam encantar pelo canto da sereia de uma ideologia falsamente liberal e pseudo-defensora da liberdade.
O neoliberalismo não promove o avanço no sentido da justiça social, da equidade e da liberdade da generalidade das pessoas; pelo contrário, representa um retrocesso civilizacional, muito embora se sirva de processos informacionais ou tecnológicos avançados.
O neoliberalismo ataca os serviços públicos e procura desagregá-los, desestruturando a sua base técnica e captando os seus funcionários mais competentes, e assenhoreia-se de áreas significativas dos serviços públicos a fim de se substituir ao Estado, feudalizando sectores essenciais da administração pública para melhor manter nas mãos de uma escassa minoria o poder económico e financeiro e dessa maneira o controlar.
A consolidação e a defesa do Estado social passam pela prática determinada e consistente da democracia participativa e do seu alargamento a áreas da cultura, da ciência e da economia; passam pela consciencialização das camadas jovens relativamente à importância dos serviços públicos e pela existência de um serviço cívico nacional que abranja todos os jovens; passam pela dinâmica de vigorosos movimentos de cidadania e pelo primado de uma cultura de solidariedade, de entreajuda e de exercício pleno da iniciativa cidadã.
Atente-se no caso do Serviço Nacional de Saúde, uma das maiores conquistas de Abril. Assistimos a um estrénuo ataque contra ele dirigido pelos neoliberais, que se aproveitam das debilidades e erros evidentes de organização e gestão de carreiras e recursos para o desacreditar e desviar profissionais para serviços privados, os quais posteriormente cobram ao Estado mais do que aquilo que este deveria ter investido no aperfeiçoamento dos seus recursos e organização.
A defesa dos serviços públicos faz-se através da exigência da adequada formação, competência e dedicação de todos os que neles trabalham, a começar pelos governantes, que são sempre os principais responsáveis, não só no plano político, mas também na esfera administrativa.
Aquilo que é público tem de ser bem organizado, administrado e gerido por pessoas competentes, responsáveis e idóneas.
Não são de modo algum aceitáveis a diluição de responsabilidades e a confusão ou indefinição entre público e privado, que só contribuem para agravar a irresponsabilidade.
Não são aceitáveis nem toleráveis a promiscuidade entre os gestores públicos e os privados nem a porta giratória entre uns e outros que inclui governantes. Trata-se de um processo que leva à erosão da ética republicana e à degradação da deontologia do serviço público.
Pelo contrário, urge dignificar a função pública e os diferentes corpos do Estado, proporcionando-lhes as indispensáveis condições de carreira e retribuição e fomentando o respeito pelo seu trabalho, definindo e assumindo sem hesitações que à cadeia de autoridade corresponde idêntica cadeia de responsabilidade.
O exemplo vem de cima: um governante ou director-geral ou qualquer outro dirigente que não saiba assumir a sua responsabilidade ou que se escude em entidades reguladoras independentes (que assim se intitulam, mas não o são) constitui um mau exemplo, desmotiva os servidores públicos e gera insatisfação e frustração nos cidadãos em geral.
É preciso saber captar para o serviço público os melhores elementos formados nas escolas e universidades públicas, proporcionando-lhes boas condições de exercício e remuneração profissionais e garantia do respeito social. Não o fazer redunda em “empurrá-los” para o estrangeiro ou para o sector privado e consubstancia incompetência ou mesmo sabotagem do interesse público e da melhoria da qualidade de vida no nosso país.
Há que saber exigir a quem exerce o poder político e a quem desempenha funções públicas e de Estado o rigoroso cumprimento da sua missão, com cabal observância dos seus deveres e da deontologia do serviço público. Urge não esquecer que todos estão ao serviço do interesse público, subordinados à Constituição e à lei, e que se encontram obrigados a uma conduta responsável e ética, pautando-se no exercício das suas funções pela justiça, imparcialidade e proporcionalidade e pelo respeito pelos direitos e deveres dos cidadãos.
Um Estado social forte não é sinónimo de um Estado que coarcte as liberdades dos cidadãos; significa, sim, um Estado que garanta e proteja a liberdade de todos, incluindo os mais desprotegidos; um Estado cujo soberano é o conjunto dos cidadãos, um Estado que não privilegie nem se submeta a poderes não democráticos, como o poder financeiro ou mesmo o poder económico; significa um Estado promotor da democracia participativa no domínio interno e promotor da cooperação e da paz no plano externo.