Passado, presente e futuro

Originalidade e singularidade do 25 de Abril

Manuel B. Martins Guerreiro

De 28 de Maio de 1926 até 25 de Abril de 1974 Portugal viveu uma ditadura, primeiro militar, até 1933, e seguidamente corporativa, beato-fascista, com a entrada em vigor da Constituição Corporativa de 1933, de Oliveira Salazar.

Portugal viria a ser em 1948 membro fundador da NATO. O país, conservador, economicamente atrasado e, em grande parte, rural e analfabeto, estava isolado internacionalmente e confrontava-se com uma guerra colonial em três frentes: Angola, desde 1961; Guiné, desde 1963; e Moçambique, a partir de 1964. O anticomunismo era um elemento fundamental do regime, permitiu-lhe ombrear ao lado das democracias ocidentais vencedoras da II Guerra Mundial, na criação d a NATO. Por outro lado, servia de justificação para a guerra colonial, a pretexto da defesa da civilização ocidental, daquilo a que hoje se chama “o Ocidente alargado”.

A juventude portuguesa estava na guerra colonial ou emigrada na Europa. Sendo Portugal um país desprestigiado e isolado, os emigrantes evitavam dizer que eram portugueses. Ao início desempenhavam as piores tarefas dos países para onde emigraram, sendo as suas qualidades de trabalho e hábitos de submissão patrticularmente apreciados pelos empregadores.

A par do partido único, a União Nacional, e da polícia política, as Forças Armadas e a Igreja eram os pilares fundamentais do regime salazarista, um regime de modelo corporativo claramente inspirado no fascismo italiano.

O salazarismo gozava de alguma base social de apoio, em especial no país rural, no centro e norte do país, promoveu e explorou o medo popular do desconhecido e agitou o sentimento anticomunista, que utilizaria contra todos os que manifestavam ideias democráticas ou reivindicavam melhores condições de vida e de trabalho. Sendo os partidos da oposição ilegais, apenas o partido comunista conseguiu resistir, em condições muito difíceis de clandestinidade. 

Verificaram-se várias tentativas de derrube do regime, pela mão de militares e civis, que não surtiram êxito: a conspiração da Sé, de 1959, a Abrilada de Botelho Moniz, de 10 de Abril de 1961, e o golpe de Beja, de 1 de Janeiro de 62, todas subsequentes à campanha eleitoral de Humberto Delgado, em 1958. Nenhuma destas tentativas foi suficientemente bem organizada e apoiada.

A guerra colonial criou uma contradição fundamental ao regime: negociar uma via de saída política com os nacionalistas das colónias portuguesas e contradizer a sua natureza de ditadura e império colonial ou continuar a guerra, sem possibilidade de vitória militar e política, esgotando todas as capacidades e recursos do país.

O regime optou por continuar a guerra. Naturalmente os jovens oficiais do quadro permanente, cujas comissões se iam repetindo, começaram a interrogar-se e a tomar consciência que a continuação da guerra não era solução: tinha de haver uma saída política. Concluíram rapidamente que o regime tinha de ser derrubado pela força a fim de se estabelecer a paz. Sem hesitar, deram esse passo a 25 de Abril de 1974.

O que tem este processo de original e singular? Tratou-se sem dúvida de uma combinação positiva, simultânea e sucessiva de vários fatores, elementos e condições objetivas e subjetivas, irrepetível, que nos permite constatar o seguinte:

— A ação militar de 25 de Abril não seguiu qualquer modelo ou método específico, teórico ou prático, ou tentativa de mudança de regime. Não foi uma insurreição ou levantamento militar nem um golpe de Estado típico.

— Os improváveis libertadores saíram de um dos pilares do regime – as Forças Armadas. 

– Na ação militar de âmbito nacional participaram exclusivamente militares; ela foi feita sob a bandeira de um programa político elaborado por elementos do MFA, sem participação de civis, ainda que inspirados nas teses da Oposição Democrática, aprovadas em Abril de 73 no Congresso da Oposição. Houve um binómio em dois tempos: ação militar e programa político.

— Os militares do MFA não assumiram o poder, delegando-o numa Junta de Salvação Nacional, que nomearia um Governo provisório de civis para aplicar o programa político.

— No dia 25 de Abril a adesão espontânea e imediata do povo em Lisboa, e seguidamente em todo o país, transformou a ação militar libertadora num processo revolucionário progressista, aberto a toda a sociedade, englobando diversas sensibilidades e camadas sociais.

Outro binómio: Movimento militar – Movimento popular.

— O 25 de Abril ocorreu sem derramamento de sangue por parte dos jovens militares, que, impulsionados por valores éticos e morais e por uma vontade de paz, liberdade e não violência, conseguiram que o 25 de Abril fosse o “dia inteiro e limpo”, de grande alegria e participação populares.

— O 25 de Abril caracterizou-se também por dimensões éticas e estéticas únicas, que o transformaram num caso muito especial da HISTÓRIA NACIONAL E INTERNACIONAL.

Foi um momento luminoso da nossa história, evocado na nossa memória coletiva como constituinte da identidade portuguesa. A imagem de Portugal mudou rapidamente, em especial no estrangeiro; os nossos emigrantes passaram a sentir orgulho em serem portugueses, o que antes não acontecia. Internamente o processo foi mais lento, tendo sobrevivido alguns esqueletos do salazarismo, que se mantiveram em alguns hábitos e atitudes, ancorados no conservadorismo rural e religioso.

O 25 de Abril afirmou uma ideia clara e uma vontade de outro Portugal, aberto ao mundo, solidário, livre e democrático nas múltiplas dimensões: política, cultural, social, económica e estética. Hoje é incontestável que essa ideia de Abril foi fundadora da democracia instaurada pelo MFA e plasmada na Constituição de 1976.

Portugal e os portugueses apareceram aos olhos da Europa e do mundo como algo de excecional e inédito. O 25 de Abril abriu as portas a um tempo novo de paz, liberdade, igualdade de direitos e deveres, de oportunidades e possibilidade de participação plena dos cidadãos na edificação de um país mais livre, solidário e justo.

Compete aos cidadãos apropriarem-se desse tempo e das suas realizações. Os valores de Abril constam da lei fundamental, e compete ao soberano, o povo português (todos nós), cumprir e exigir o cumprimento da Constituição a quem exerce em seu nome o poder executivo, legislativo e judicial.

Há hoje elementos e forças que influenciam o nosso devir histórico, que estão fora ou escapam ao controlo democrático: refiro-me aos poderes financeiro, económico e comunicacional que se articulam à escala global, ultrapassando claramente os Estados, capturando e condicionando o poder político e o próprio aparelho do Estado, reduzindo substancialmente o espaço democrático e a possibilidade de iniciativa dos cidadãos.

A soberania do Estado Português está reduzida não apenas no âmbito de União Europeia, por via do Tratado da União, mas também no seu próprio espaço de autonomia no âmbito internacional e de defesa dos interesses nacionais, da língua e cultura portuguesas, no espaço do Sul global onde temos condições para nos afirmarmos.

O 25 de Abril conquistou para Portugal o lugar digno que lhe era devido no concerto das nações. Os sucessivos governos não têm sabido dinamizar e aproveitar esse espaço.

A democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa, prevista no artigo 2.º da Constituição estão longe de ter sido alcançados; podemos mesmo dizer que há um défice cada vez maior e que os poderes não democráticos dominam hoje indiretamente a nossa vida política e diretamente a económica. As desigualdades crescem a par da frustração e insatisfação de muitas pessoas. A sociedade do consumo e do desperdício gerada pelo mercado e pela criação de necessidades artificiais está a caminhar para um ponto de rotura. A desregulação dos mercados, os novos centros de poder transnacionais e informacionais questionam cada vez mais o Estado Nação e o poder dos cidadãos organizados democraticamente, potenciam o aumento contínuo dos excluídos, marginalizados e dispensados pelo sistema, tornando-os presa fácil da demagogia, do populismo e do autoritarismo

Nesta fase da vida das sociedades atomizadas, as desigualdades, a insatisfação e a frustração individual crescem; o comando dos processos escapa muitas vezes ao poder político dos Estados e o controlo democrático por parte dos cidadãos ou dos seus representantes é muito débil ou não existe de todo.

O autoritarismo e a ultradireita estão em crescendo no mundo e na Europa, o que exige uma resposta clara dos cidadãos e das forças democráticas, impondo-se a elevação do nível de consciência da situação, dos seus perigos e ameaças, preparando-se para o combate, para a defesa, promoção e aprofundamento da democracia, valorizando os processos colaborativos e inclusivos .

Para responder a problemas globais e salvaguardar a vida na Terra é necessário articular lutas e soluções guiadas por valores universais e intemporais como os valores de Abril, que permitam conjugar capacidades e contributos de diferentes países, origens e culturas.

Vivemos tempos de mudança e forte instabilidade. O que poderia ser uma transição negociável no sentido da multipolaridade passou a conflito armado, que atinge já a Europa.

O apelo ao belicismo e ao aumento das despesas com o armamento é um elemento motor da política de defesa da unipolaridade, que beneficia claramente a economia americana, com prejuízo evidente da Europa. Portugal tem por onde se guiar: basta conhecer e interpretar com seriedade e profundidade as linhas e princípios fundamentais da nossa Constituição: 

Artigo 1º — República Portuguesa – fins;

Artigo 2º — Estado de direito democrático sua natureza;

Artigo 8º — Direito Internacional aplicável;

Artigo 9º, relativo às tarefas do Estado.

Não negociar a transição e o conflito existente levará à intensificação da guerra e dos seus custos em termos materiais e de vidas humanas.

O crescimento da direita e da ultradireita em vários países europeus, incluindo Portugal, tem apoios na enorme massa de marginalizados, frustrados e desempregados gerada pelo atual sistema produtivo, financeiro e económico. Vivemos numa fase de transição do neoliberalismo do capitalismo predador para o “neofeudalismo” capitalista, com base na articulação dos centros do sistema financeiro, dos centros de poder das grandes empresas, de plataformas e instrumentos digitais, dos novos proprietários ou gestores de bens comuns e de prestação de serviços públicos, que vivem sobretudo de rendas, juros, interesses e direitos e, por essa via, se apropriam do produto de quem trabalha: nos serviços públicos, na atividade produtiva direta, de quem cria, desenvolve e aplica a ciência e as novas tecnologias.

O neofeudalismo não hesitará em usar a máxima violência possível para se afirmar como a solução adequada para os velhos e novos problemas da sociedade.

Em Portugal o partido não nomeável alimenta-se também destes estratos sociais de descontentes, frustrados, desempregados e zangados e ainda de saudosistas do salazarismo e do império colonial; usa e polariza em seu benefício os vícios, a corrupção, as fraquezas e incompetências de quem tem exercido o poder. Este partido e quem o sustenta desempenham o seu papel nesta mudança em curso do neoliberalismo (capitalismo predador) para o “neofeudalismo” capitalista , onde os “direitos de propriedade” já não são sobre a terra, mas sim sobre bens comuns, serviços públicos, instrumentos, plataformas e aplicações digitais essenciais às novas formas de comunicação, de gestão dos “negócios” e exploração do trabalho alheio nesta sociedade do imediato, da imagem e do desperdício.

Está em curso, sob os nossos olhos, a desagregação e substituição do Estado de Direito Democrático de matriz social por uma articulação de Entidades independentes nacionais e internacionais não democráticas, aparentemente neutras, sem qualquer controlo nos domínios político, económico e social dos cidadãos, tendo estes devidamente anestesiados e fixados nas imagens que convêm ao poder.

O cidadão reduzido às dimensões de utente ou consumidor está a transformar-se num novo “servo da gleba” ao serviço dos “proprietários” de direitos de prestação de serviços ou da disponibilidade de instrumentos e capacidades.

Os valores que nos motivaram são intemporais: continuam plenamente actuais. Defendê-los e promovê-los é continuar Abril.

Continuar Abril é lutar pela dignidade de cada um e do País, é não alienar a propriedade pública e os serviços públicos, é resistir ao individualismo, ao consumismo e imediatismo, é respeitar o legado de Abril de igualdade, solidariedade e independência, é impedir a desagregação do Estado Social, é criar redes de associações e de comunidades de cidadãos responsáveis e actuantes.

Abril não é apenas passado, é presente e será futuro. Todos nós, independentemente da nossa idade, continuamos a ser futuro, ao exercermos a cidadania e a democracia participativa.

Abril é futuro!