Mário Júlio Simões Teles
Aproximam-se tempos de roturas. Esta previsão ou conjectura baseia-se nos sintomas de erosão da democracia que estão à vista, de que são exemplos: o afundamento de partidos tradicionais – nomeadamente em França e em Itália; o êxito do Brexit no Reino Unido, assente numa campanha populista que fraccionou os partidos principais partidos; a eleição de Trump e a persistência do trumpismo mesmo depois da sua derrota eleitoral ulterior. E de sintomas do tipo fuga para a frente, por serem irracionais à luz de um são funcionamento dos regimes democráticos, que são a guerra na Ucrânia e a rotura económica com a Rússia, bem como a guerra na Palestina com o desprezo dos mais elementares princípios de humanismo – já não é preciso provar a desumanidade imperialista, ela está à vista, à semelhança do que escreveu Mário Castrim das provas da esfericidade da Terra quando a viu na televisão filmada da Lua, em Julho de 1969 (ai da professora primária que continue a perguntar aos seus alunos as provas da esfericidade da Terra – a sombra dos eclipses, os mastros de navios a desaparecerem no horizonte; qualquer um lhe pode responder: – a Terra é redonda porque eu vi na televisão!).
O descontentamento
Emergem em múltiplos lugares maiorias descontentes com a versão da democracia com que temos convivido. A incapacidade destas democracias em resolver satisfatoriamente os problemas das sociedades pode ser resumida na célebre frase, dita e redita por quem já esteve e por quem está no poder algures: «não há alternativa». Esta assumpção devia envergonhar intelectualmente quem a assume em ambiente democrático. Em democracia revindicar que não há alternativa é uma contradição entre os termos, é um paradoxo, dito num parlamento configura um oximoro (ou oxímoro).
O descontentamento tem conexão essencialmente com a falha de expectativas. O que está em causa é uma derivada, não um nível determinado das condições de vida. A seguir à 2º Guerra Mundial as cidades e os campos da Europa estavam destruídos e as pessoas estavam pobres, mas a derivada era positiva, as expectativas de melhorias eram fortes e, nesses países, ainda coloniais, foram correspondidas em grande parte, até ao princípio da década de oitenta do século passado. A partir dessa década, as expectativas de cada vez mais amplas camadas das populações têm vindo a ser defraudadas – exemplo, os jovens vêm-se obrigados a permanecer em casa dos pais até muito para além do que os pais permaneceram no seu tempo de jovens.
No entanto, pasme-se, o descontentamento apareceu e cresceu ao mesmo tempo que os direitos políticos individuais cresceram também! Direitos das mulheres servem como exemplo. E também cresceu e continua a crescer a par com o aumento dos PIB.
O que nos permite avançar e conjecturar que o descontentamento decorrerá: (1) da percepção de que, afinal, não se tem o controlo das forças vitais que governam as nossas vidas, que são forças económicas fora do alcance do nosso radar; (2) da percepção que os elos sociais estão a desaparecer, seja ao nível da família, ou do bairro ou aldeia ou da cidade, ou do Estado, ou mesmo da UE, no caso da Europa, ou dos Estados que compõem os EUA – o que se transmuta em ansiedade. Nos países desenvolvidos a estagnação de algumas das condições de vida, de que o desemprego é exemplo, será apenas uma segunda derivada, um factor de uma ordem de influência menor do que aqueles dois.
A contradição
Podemos então deduzir que as configurações democráticas com que vivemos não correspondem às necessidades de controlo da complexa economia de grandes empresas e da finança mundial que, ademais, actuam na escala mundial. Está estabelecida uma contradição entre o desenvolvimento da economia e o desenvolvimento da democracia. A economia é controlada fora da esfera democrática por grandes empresas, sejam industriais, de serviços, tecnológicas ou financeiras. A nossa vida não é controlada pelas democracias. Na economia industrial ainda se iam conhecendo os patrões em pessoa. Na época da economia financeira e da economia globalizada conhecemos logotipos apenas. Os nossos esforços de cooperação são orientados para a cooperação individual com grandes organizações, cada vez mais complexas e impessoais. A cooperação entre pessoas ou a mediação através de pessoas tende a tornar-se residual.
O controlo atrás denunciado estende-se a todos os níveis das sociedades, desde o das organizações internacionais até ao do nível autárquico. Olhe-se, a título ilustrativo, para a inoperância da ONU em evitar e depois em pôr fim às guerras em curso, aliás à semelhança do que aconteceu com guerras passadas. O desrespeito pelas suas decisões, tomadas em ambiente democrático, não é exclusivo de regimes de ditadura. É até quase sempre o contrário.
Em resumo: a nossa liberdade é ilusão, que resulta de ser ilusória a democracia que temos. Do que precisamos mais é de conquistar a liberdade de controlar as forças económicas e financeiras que nos governam e que essa é sem margem para dúvidas a condição para usufruir das restantes liberdades, i.e., exercer os direitos individuais.
Breve abordagem à economia vigente
Os governos que nos têm governado escondem-se atrás de uma pretensa neutralidade da economia, procurando obliterar a sua natureza política. Fazem-no à luz do princípio básico que foi estabelecido pelo pai maior dela, Keynes, que citamos: «o consumo é o único fim e objecto de toda a actividade económica», a que acrescentou «trabalhamos para ganhar dinheiro de modo a podermos consumir». A partir deste axioma já se compreende que a política económica vigente gire quase exclusivamente à volta de variáveis agregadas – de que a despesa pública é o exemplo maior, mas onde também estão as políticas fiscais associada às políticas redistributivas, bem como as políticas monetárias. São tudo índices, com que se pretende induzir a neutralidade em relação aos fins últimos da actividade económica. Com propriedade pode-se comentar que toda a parafernália de índices se destina a esconder o rabo do gato.
Ao consumo ficou imediatamente e irremediavelmente associada a variável crescimento, que tem de ser contínuo para satisfazer o consumo crescente.
Admitamos que esta abordagem pode ter tido a sua razão de ser, quando amplas camadas da população ficaram a viver ao nível da subsistência devido às três guerras que ocorreram na primeira metade do século XX: A Grande Guerra de 1914-18, a Grande Depressão de 1929-31 e a Segunda Guerra Mundial de 1939-45. Mas consistiu principalmente na maneira prática de obter um nível elevado de consensos políticos – afinal dispensou e acabou por fazer esquecer a discussão política fundamental sobre os fins reais da actividade humana, os tipos de instituições que os podem proporcionar, o fulcro no trabalho como respaldo do carácter e da dignidade, a responsabilidade dos governos na promoção da cidadania.
A cereja em cima do bolo desta filosofia política são os mercados. Os mercados são uma espécie de varinha mágica. É através dos mercados que as escolhas de consumo têm de ser feitas. Nada disso tem a ver com os governos, os governos não têm de se intrometer nas escolhas das pessoas. Ora os mercados e a concorrência em si mesmos não são armas letais. Mas passam a sê-lo quando são erigidos em mandantes das políticas, ademais ficando sob controlo de elites desconhecidas.
E foi anestesiados pelo consenso sobre o consumo e o crescimento que chegámos onde estamos.
Por uma nova economia
Porém, as últimas quatro décadas vieram evidenciar que não se pode ser neutro em relação à organização económica, o que já estava estabelecido antes por muitos, mas estava esmagado pelos defensores dos mercados de consumo triunfantes e estava esquecido por alguns outros. Desde logo, é fortemente contestável que a vida das pessoas se reduza ao consumo. Talvez por desconfiarem disso, a variável económica que é usada para avaliar o almejado consumo é, curiosamente, designada por PIB, isto é, disfarça-se de produção.
O PIB não nos diz nada sobre as qualidades intrínsecas da economia. Em que relações de produção assenta? Um determinado PIB contém em si mesmo a dignificação do trabalho produzido ou a sua degradação? Quantas Odemira ou Martim Moniz há pelo país escondidas? Numa economia da cidadania, à produção tem de estar necessariamente associada a dignificação do trabalho, visto que o trabalho é forma natural e basilar da convivência em sociedade.
A glorificação do PIB redunda em falácia. Hoje sabemos que ao crescimento do PIB está associada desigualdade crescente e que a contribuição do trabalho no PIB tem vindo a diminuir. A nova desigualdade é em si mesmo um factor de erosão dos elos sociais. As formas de vida cada vez mais separadas – os condomínios fechados no seio de urbanizações amontoadas são exemplos menores – decorrem da nova desigualdade.
Não é por acaso que a desigualdade está a crescer, visto que contribui para garantir o controlo da economia por parte de quem está no extremo do lado da riqueza. Quem tem posses, sobretudo quem tem muitas posses está em boas condições de influenciar a governação. A tentação de o fazer faz parte da natureza humana. Para quem não tem posses ou tem poucas posses essa possibilidade é remota ou reduzida, a menos que se organizasse em grandes grupos de influência e, mesmo assim, não dispensaria financiamento. Também faz parte da natureza humana ganhar inveja e rancor se se estiver do lado mau. Aquilo a que se chama corrupção está enquadrado pela desigualdade.
Pode-se combater e deve-se combater a desigualdade lutando por melhores salários. Mas deve-se ter presente que essa luta, por si só, não altera ou pouco influi no poder de quem detém o controlo da nova economia, a menos que fosse um movimento de escala mundial. É a aspirina que tem de se tomar, senão não se aguenta a dor, mas não cura o mal, que é profundo.
Comunidades
É necessário inverter a situação em que vivemos e que procurámos caracterizar sucintamente. A definição do interesse geral não resulta do mero apuramento quantitativo e subsequente rateio dos interesses individuais, como se pretende que os mercados façam com os bens de consumo e como se pretende que a democracia representativa faça também de xis em xis anos através de eleições. A essas quantificações e rateios há que associar qualificações que as precedam através do exercício permanente e universal de intervenção nas coisas da governação.
Não vamos enumerar aqui vias concretas para a instauração de economias da cidadania, apesar de termos algumas sugestões no bolso. Apenas diremos que o assunto é bem difícil de equacionar e de pôr em prática e que não há via única. Pelo que dissemos, o assunto é muito mais de cidadania do que de economia (e que tenha sido este entendimento que tenha conduzido a trazê-lo a uma associação cultural). Seja que formas concretas assumirem nenhuma das vias será bem-sucedida se não actuar simultaneamente na superestrutura e na base da sociedade.
Actuar na base significa contribuir para a mobilização massiva e permanente dos cidadãos nos diversos níveis do governo da sociedade. Essa mobilização é muito mais que «rua». Implica que se constitua em células a cooperar em rede com pelo menos duas características: (1) serem capazes de participar permanentemente na governação na escala local; (2) serem capazes de se federarem para participarem na governação nas escalas regional e nacional e, a partir daí, chegarem às organizações internacionais. Estamos a falar de comunidades. A palavra-chave é rede. É recorrendo a uma rede que a cooperação entre pessoas distantes entre si se transforma em comunidade, na medida em que se participa na definição dos objectivos que, por essa via, se interiorizam. A cooperação profissional no seio de uma empresa moderna raramente assume a forma de comunidade. E no polo oposto de comunidade estão os movimentos populistas. Nestes, prevalece o culto a um chefe, o seguidismo e o esbatimento até à anulação das práticas democráticas.
Por seu lado, actuar na superestrutura significa procurar alterar as correlações de forças ao nível dos diversos escalões da governação instalada, retirando poder aos poderes que empurram para os mercados as decisões que eles próprios deviam tomar, ao cultivarem uma pretensa neutralidade em aspectos fundamentais da vida em sociedade, isto é, demitindo-se convenientemente.
A experiência do 25 de Abril
É aqui que entra a evocação do 25 de Abril, isenta de qualquer nostalgia, tão somente como reflexão eventualmente útil para as momentosas tarefas que nos aguardam. Referimos dois aspectos, entre outros, que podiam igualmente ser chamados à evocação como são os de natureza intrinsecamente formativa ou cultural, a ser tratados em pé de igualdade com o que estamos a tratar agora. No primeiro aspecto que retemos relembramos que a Ditadura não foi derrubada por um grupo armado emanado de uma insurreição popular, ao contrário da maior parte das revoluções. Foi derrubada pela convergência da acção profissional de um grupo de jovens militares – i.e., de uma sub-componente do Estado – e da acção popular que arrancou no próprio dia e se generalizou, multiplicando-se em muitas acções. Não houve nenhuma combinação entre as duas componentes: o MFA actuou com total autonomia; os movimentos populares também, desde logo ao nível local, em seguida ao nível nacional. Houve, sim, cooperação intensa durante os 579 dias de Abril.
O segundo aspecto evoca a Constituição de Abril e decorre do primeiro. A duplicidade de actuações inerente ao 25 de Abril que referimos ficou, com naturalidade, acolhida na Constituição da República, na medida em que os direitos económicos, sociais e culturais são nela colocados a par dos direitos políticos – de cujo sistema representativo vigente na prática só minorias beneficiam. Nesses direitos está incluído o direito ao trabalho e a condição dos trabalhadores como cidadãos com direitos específicos (artigos 58.ºe 59.º), cf. sublinhou o jurista António Cluny em artigo recente. Nisso se distingue de outras constituições. A atenção que a nossa Constituição dedica ao trabalho e aos trabalhadores deve ser encarada como um factor de produção decisivo na busca do desenvolvimento económico de que carecemos. Isto é, a par do indispensável exercício democrático da escolha periódica dos representantes na superestrutura política, incentiva a trilhar caminhos para intervenção permanente em todos os campos da sociedade. Assim haja forças para os percorrer e conseguir impor os direitos atrás enunciados – nenhum direito alguma vez foi concedido, todos foram conquistados.
Para terminar, três notas
- Reflexões deste teor – e muito mais elaboradas e feitas por autores consagrados – provocaram risos ainda na véspera da crise financeira mundial de 2007-2009 e chacota vinte anos antes. Hoje, estão a ser levadas muito a sério. Este é também um sintoma de que se aproximam grandes mudanças.
- Está sempre presente a alternativa má – a militarização e a guerra.
- O lastro do 25 de Abril na sociedade autoriza-nos a aceitar os riscos de uma luta pela verdadeira liberdade cívica, isto é, a liberdade generalizada de participar permanentemente e a todos os níveis no governo da sociedade.