João Vasconcelos Costa
Em 1936, Dolores Ibárruri, a Passionário, de punho bem erguido, gritou “No pasarán!”. Infelizmente, passaram, com consequências terríveis para milhões de pessoas. Gritemos de novo, com “vozes ao alto, unidos como os dedos da mão”, NÃO PASSARÃO!, mas para que, desta vez, se cumpra o grito da Passionária.
Estamos em tempos de apocalipse, de um millenarismo que chegou com atraso de duas décadas. “E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta (…) e calcule o número da besta; porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.” )João, Apocalipse, 13). Não sei se a besta de agora tem número, mas sei que tem nome – fascismo. Dirão que o termo é cientificamente errado, e concordo, mas isto pouco importa para quem, como eu, viveu com essa besta três oitavos da sua vida.
O sonho vivido do 25 de Abril pareceu prometer-me que esse tempo ficaria para sempre como uma má memória, mas o sonho está a ceder lugar ao pesadelo. Ouvem-se cada vez mais perto os passos da besta e ela já cobre todo este ocidente com a sua sombra, de “obscuridade escura”. Depois de ter semeado filhotes por toda a Europa, já tomou assento à secretária da Sala Oval e agora ameaça este nosso canto esquecido do mundo que, na nossa tendência para a despreocupação leviana, julgávamos ser excepcionalmente imune aos movimentos exteriores, como se a Senhora de Fátima de facto nos protegesse especialmente.
O mundo mudou mais durante o último meio século da minha vida do que em toda a vida do meu avô e do meu pai juntos. Com isso, “o velho está a morrer e o novo ainda não nasceu. Neste interregno, aparecem todos os sintomas mórbidos”, Escrito há um século, na primeira aparição da besta, vale hoje novamente.
O velho foi o pujante movimento operário e dos trabalhadores, a luta pelo socialismo, a tentativa falhada de o instaurar, falhada em boa parte pelos seus próprios erros e perversões dos ideais mais nobres.
O novo terá de ser um novo movimento dos subordinados de todos os tipos, dos explorados que agora pensam que já não o são, e com um novo projeto transformador e de emancipação, em linha com a mudança radical que o mundo sofreu. Já não se trata de renovar a esquerda; é necessário reinventá-la.
E nem é só o projeto transformador – socialista, social-cristão, altermundialista ou como lhe queiram chamar – que está em causa; é também a própria democracia. Neste momento, a defesa da transformação social, a caminho de uma sociedade efetivamente igualitária, justa e solidária, passa pela defesa da democracia.
Os desviantes esquerdistas dirão sobranceiramente que a democracia é burguesa e como tal coisa a ir para o caixote do lixo da História. Esquecem que burguesa era a democracia original, censitária, elitista, reservada aos homens. A nossa democracia, apesar de muito longe do que deve ser o poder (“cracia”) do povo (“demo”) é o resultado de muitas lutas populares, o reflexo de conquistas de sentido progressista que custaram a vida e a liberdade de muitos combatentes populares.
O significado de ontem
O dia de ontem não foi uma viragem brusca, de nova qualidade, porque, no fundo, só mostrou – de forma mais chocante – um processo que já se vinha a desenrolar. Mas fica como um marco simbólico.
Marco simbólico porque, para já e provavelmente para um longo período, acabou o sistema de centrão bipartidário, de pântano, do que mais vinha corroendo a confiança no nosso modelo de democracia. Acabou em boa parte, mas em má direção, o “republicanismo liberal” que inflectiu o processo revolucionário do 25 de Abril, o sistema criado por Mário Soares e Sá Carneiro (a título de exemplo) e depois mediocratizado pelos sucessores.
Marco simbólico pela decadência (definitiva, na senda da evolução europeia?) do partido que se apresentava sempre como “pai da democracia”.
Marco simbólico, porque a ultradireita iguala o PS em número de deputados e se calhar, com a emigração, ainda o ultrapassa.
Marco simbólico porque a ultradireita ganha bastiões com significado histórico do antifascismo e das lutas dos trabalhadores, como o Alentejo, o distrito de Setúbal ou a Marinha Grande (que, claro, já nada têm a ver com a terra dos proletários agrícolas, dos operários do Barreiro ou com os videiros).
Marco simbólico porque parece indicar a decadência irreversível da efémera mas aparentemente promissora “nova esquerda”, a do Bloco.
Não é agora ainda o tempo para uma análise fina, que o que importa hoje é mostrar – também a nós próprios – que estamos de pé, octagenários como eu e jovens como os muitos que vi desfilarem em 25 de Abril, de cravo vermelho ao alto. Ficam só alguns apontamentos soltos mais salientes.
O Chega ficou vitorioso e isto é o facto mais marcante, em termos de processo histórico, mas também se deve assinalar o significado, no imediato, de o PSD ter sido premiado, mau grado a sua má governação e as dúvidas sérias sobre o caso do tráfego de influências por Montenegro. Uma primeira impressão pode ser a de o eleitorado ter manifestado o seu desagrado por uma crise com alguma artificialidade, com aspeto de mero joguinho partidário, moções por um lado, comissão parlamentar de inquérito por outro, tudo matéria de negócio de bastidores.
O Chega revela-se cada vez mais abertamente o que é: versão tuga de um neofascismo, ultradireita ou o que lhe quiserem chamar, que, por outras partes da Europa, tem alguma articulação intelectual e coerência programática, assim como aparência de respeito pelas normas institucionais (Meloni e Le Pen, mas já não Orbán). O Chega, comparado com esses, com os primos nórdicos ou mesmo com o vizinho Vox, é a versão correio da manhã.
Cá, é a boçalidade, o pilha-apanha de “ideias” que de coerente só têm o seu reacionarismo troglodita, o recurso ainda em maior grau – só comparável a Trump – ao ódio e à mentira descarada. E, na euforia, já está a mostrar os dentes. Como disse ontem o eufórico Ventura, preparem-se para “prestar contas” todos os que, na comunicação social, nas sondagens, etc., tentaram desvalorizar o Chega. Também que “se acham que fomos agressivos, ainda não viram nada”. Passando também por se referir ao “povo português humilhado (sic) por 50 anos de democracia”.
O PS perde para a AD mas também creio que, sem margem para dúvidas, para o Chega, em zonas suas anteriormente fortes como Aveiro, Ribatejo, Portalegre, tal como já antes no Algarve. O mito da afirmação do Chega à custa do PCP, que provavelmente nasceu por analogia com a União Nacional lepenista, mostra-se simplista, como sempre escrevi.
A IL e o Livre subiram menos do que alguns previam. Têm um nicho próprio, que lhes dá algum conforto mas escassa margem para crescimento explosivo. Num caso, gente de direita “educada”, com instrução superior, capaz de alguma elaboração de convicções no quadro do neoliberalismo; no outro, uma posição de esquerda sincera e de tradição social-democrata clássica, pré-blairista, mas com algum centrismo, moderação e diálogo. Esta imagem, a par de uma candura política com muita infantilidade, acarreta-lhe alguma simpatia.
O PCP perde um deputado mas aguenta-se em percentagem de votos, o que já não é pouco. Trava – pelo menos por agora – o que parecia ser o seu movimento descendente mas a um nível baixo, quase a bater no fundo. É uma travagem quase à beira do precipício, o que não alivia o perigo. Paulo Raimundo afirma uma imagem comunicacional muito boa, destacando-se de quase todos os outros líderes, o que, nestes tempos de mediatização, é importante. Nota significativa: ao contrário da habitual sala cheia de militantes maduro/velhos, ontem era uma sala vibrante de jovens em ambiente quase festivo, de bandeiras e cantos. Novos tempos no PCP?
O resultado do Bloco, reduzido a um deputado e pela primeira vez sem grupo parlamentar – o que nem aconteceu quando o BE entrou na AR, logo com dois deputados – é preocupante para toda a esquerda. Não sei bem como explicá-lo, mas arrisco-me a pensar que possa ter alguma coisa a ver com uma eventual transferência direta do Bloco para o Chega de um eleitorado jovem masculino, como discuti sábado no último numero (#33) deste boletim.
E agora, que fazer?
Repito: o velho está a morrer e o novo ainda não nasceu! É preciso começar já a preparar-lhe o parto. Como nos tempos das velhas parteiras, ferver água e juntar toalhas limpas . A água das novas ideias, do ajustamento à realidade da grande mutação, na mira dee uma “prática do presente para uma teoria do futuro”. As toalhas da consciencialização e organização do “neomoderníssimo príncipe”, um novo movimento popular.
Ambas as vertentes são indissociáveis. Numa situação tão complexa, não há teoria sem prática, não há prática sem teoria (desculpem a lapalissada). Os amantes da filosofia dirão que é uma nova fase de desenvolvimento da filosofia da práxis.
Classicamente, escreveu-se que “os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”. Parece-me que agora, numa inversão dialética, é tempo de os filósofos interpretarem o novo mundo, sob pena de não ser possível transformá-lo. Os intelectuais progressistas foram marginalizados durante as últimas décadas pelo aparelho ideológico dominante, inclusive a academia. Têm agora pela frente um grande desafio e uma grande responsabilidade.
Nesta análise, e de imediato, um passo essencial é identificar, para combate eficaz, as causas da ascensão do neofascismo. Como tudo, ele não nasce nem por milagre nem por acaso. Já muitas vezes tentei nos meus escritos discutir os fatores que estão na génese desse fenómeno. Remeto o leitor para esses muitos escritos – é fácil com o Google – sem prejuízo de voltar ao assunto. Vale a pena repetir.
Em paralelo, a reconstrução de um novo movimento popular encontra grandes desafios e fatores condicionantes: a mudança no mundo do trabalho e o alargamento quantitativo e qualitativo da classe trabalhadora, a redistribuição do trabalho entre nativos e imigrantes, a alteração da estrutura de classes, as aspirações sociais e individuais modernas, a degradação do ambiente e da qualidade de vida, a insegurança dos jovens, a mudança da geografia humana e a crise demográfica, etc.
Tudo terá de ser diferente, desde a organização e funcionamento das formas de intervenção – partidos, movimentos, comunidades – aos programas e até à linguagem.
No entanto, isto é tarefe histórica imensa, num processo forçosamente lento, contraditório, com muita incerteza. Para já, os perigos impõem uma atitude pragmática, imediata, centrada em eixos que me parecem indiscutíveis:
- Defender a democracia;
- Defender o cumprimento dos direitos humanos, com destaque para a proteção dos imigrantes e a defesa de todos os discriminados pelos motivos bem explícitos na nossa Constituição;
- Defender o Estado social de bem-estar, com especial preocupação com a resolução dos problemas dos jovens;
- Promover a paz;
- Combater o clima de ódio, a mentira e a desinformação;
- Combater a corrupção, o clientelismo partidário, o carreirismo, valorizando a ética política.
O dia de ontem é um toque de alerta para a necessidade de criação imediata de um grande movimento unitário antifascista, progressista, tanto a nível político-partidário como social e cultural.
Como preocupação imediata deve estar agora a luta preventiva contra uma eventual aliança, formal ou encoberta, entre a direita convencional (PSD, CDS, IL) e o Chega. É tempo de COVID. Se não há vacina disponível, pelo menos um cordão sanitário a isolar a peste.
É dever de todos, também neste caso “de cada um conforme as suas possibilidades” – nos nossos partidos, sindicatos e associações, no nosso trabalho, na comunidade, no círculo de amigos e na conversa de café, no nosso mural de Facebook ou na “newsletter” do Substack, nos artigos de opinião nos jornais (difícil é fazê-los passar).
Se for assim, NÃO PASSARÃO!